terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Marchamos. E agora?


Por Luísa Abbott Galvão*

Neste sábado, participei durante nove horas em Washington da maior manifestação na história dos EUA. No dia seguinte, acordei me perguntando: e agora?  

Especialistas estimam que entre 3,6 e 4,5 milhões de pessoas participaram das marchas realizadas nos 50 estados do país. Eventos de solidariedade foram realizados em mais de 70 outros países, do Brasil a Antártica.  A marcha foi motivada tanto por uma rejeição do Presidente Trump e o conservadorismo que ele representa, como pela necessidade reconhecida de lidarmos de uma vez por todas com o atraso gritante em nossa sociedades em relação a questão de gênero.

A ideia da marcha surgiu na noite da derrota de Hillary Clinton para Donald Trump. Clinton ganhou o voto popular por quase 3 milhões de votos, mas perdeu no Colégio Eleitoral e não pôde comemorar a quebra do “teto de vidro” no centro de convenções de vidro que tinha escolhido em Nova Iorque. A campanha de Trump tirou do armário e empoderou os preconceituosos conservadores do país, supostamente abafados pelos “politicamente corretos”, e desencadeou a manifestação aberta e vocal de todo tipo de preconceito – machismo, racismo, homofobia, xenofobia, e preconceito contra pessoas portadoras de necessidades especiais. Mas o gigante só acordou mesmo com o vazamento de uma gravação no qual Trump promovia o assédio sexual, dizendo que se pode “pegar mulheres pela buceta” (“grab them by the pussy”). Isso ofendeu as sensibilidades e os “valores familiares” até dos republicanos.

A ideia da marcha foi alvo de críticas no início por ter surgido de mulheres brancas, promovido uma falsa universalidade feminista, e por ter se apropriado do nome de uma marcha organizada por mulheres negras no final dos anos 90,  a “Million Woman March”. Preocupadas em fazer uma marcha inclusiva e interseccional, as organizadoras mudaram o nome e contrataram três ativistas para liderar a organização: uma afro-descendente, uma latina e uma muçulmana. Muitos reiteraram a ironia desse feminismo branco quando as mulheres brancas nos EUA votaram em sua maioria pelo Trump, enquanto 94% das mulheres afro-descendentes votaram pela Hillary.

A marcha também foi inicialmente criticada por não ter uma lista de demandas ou reivindicações. Porém, uma semana antes do evento, as organizadoras lançaram uma plataforma ultra progressista de quatro páginas, com reivindicações abrangentes, clamando pela igualdade de remuneração e licença maternidade, pelo fim da violência contra as mulheres, pelo fim do encarceramento em massa, pela combate a mudanças climáticas, pelos direitos dos profissionais do sexo, trabalhadores agrícolas e domésticos, pelos direitos LGBTQIA, pela desmilitarização da polícia, pelos direitos reprodutivos, e contra a deportação de imigrantes, e a favor dos refugiados, povos indígenas, dos movimentos Black Lives Matter e dos Occupy Wall Street.

O tema principal da marcha foi “pussy,” palavra que tem um duplo significado em inglês: gato (“pussy cat”), e uma expressão pejorativa para vagina. Fotos mostram um mar de mulheres com chapéus cor-de-rosa com duas pontinhas, mulheres se re-apropriando da palavra,  com afirmações criativas de “pussy power” (poder da buceta), e “pussy grabs back!” (“buceta pega de volta!”) em resposta ao comentário machista do Trump e contra a cultura de estupro. Vi cartazes e ouvi palavras de ordem de “rapist in chief” (chefe de estupradores), uma trocadilha com o título do presidente “commander in chief” (comandante chefe).  

Qual será o significado dessa insurreição histórica?

Uma das primeiras ações do governo Trump foi apagar as páginas de LGBT, mudanças climáticas, e dos povos indígenas do site do governo, bem como todas as páginas em espanhol, e anunciar cortes aos programas de violência contra as mulheres do Departamento de Justiça. 

Uma coisa é certa: essas manifestações ativaram muitas pessoas pela primeira vez. Mas todos reconhecem que a defensiva precisará de mais do que isso. Desde a derrota de Clinton, milhares de mulheres tem se candidatado para todos os níveis de governo nos EUA, assumindo responsabilidade para reverterem a falta de representação política nas instituições. Vamos torcer para que a indignação se converta em mudanças – e votos.

*Luísa é ativista e feminista brasileira e americana

AGORAÉQUESÃOELAS Folha UOL


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