quarta-feira, 21 de junho de 2017

Negra, doutora, artista e das letras

De Dominique Azevedo,  por Mônica Aguiar 

Ao ler a entrevista da jornalista Donminique Azevedo do Portal Correio,  com Tatiana Nascimento, fiquei fascinada com o  potencial da conversa e sua  relevância para todos os leitores.
O Conteúdo apresentado é uma grande contribuição  para formação e informação  de todas e todos.   

Tatiana Nascimento, mulher negra que, em seus escritos, junta ativismo e pesquisa acadêmica, tendo a diáspora negra como tema recorrente, bem como a dissidência sexual.
Doutora em estudos da tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina, na interface acadêmica se interessa pelas poéticas, performances, políticas negras diaspóricas e suas traduções de autores e autoras negras.  Seu  primeiro livro  teve tiragem de 300 exemplares feitos à mão.  Isso mesmo: costurados artesanalmente. Ela é palavreira: poeta, compositora, cantora, tradutora, editora de livros artesanais, zineira e blogueira.

Minha palavra poética tem sido soprada pelos ventos assim: feito brisa, feito furacão.

Segue ........

“ Interessa-me muito pensar a literatura (e outras artes narrativas, como o cinema, o teatro) como ao mesmo tempo máquina de repetição e máquina de ruptura. De repetição porque as artes narrativas em geral, quando produzidas desde corpos/subjetividades hegemônicas, insistem na representação do povo negro como sujeito preferencial da violência – seja reprodutor da violência, e aí o estigma bandido/puta/empregada exemplifica; seja alvo da violência, e aqui tô falando de como as mídias mediadas por ecrã (televisão, novela, seriado, telejornal, cinema) têm um sadismo visual operante que adora a exposição/exploração de corpos negros violentados, mortos, machucados, encarcerados.

Mas a literatura e as artes narrativas também podem ser máquinas de ruptura desse padrão, e aí vejo com muita alegria que quando subjetividades/corpos subalternizados produzem novas narrativas – ou fazem arqueologia simbólica de narrativas ancestrais igualmente libertadoras, contestadoras – os mundos novos que isso cria não ficam restritos ao campo do imaginário, das letras, das cenas, mas alimenta os horizontes do possível, da renovação, jogam no mundo espelhos onde o povo preto pode se mirar em lugares que não os estereotipados.

Nesse sentido, essas escritas negras (ou sobre negritude, uma vez que tem muita gente tentando descolonizar seus imaginários da presença racista na hora de produzir novos conteúdos literários/visuais artísticos, e tem gente negra e gente não-negra fazendo isso, algumas não-negras até acertando) operam de maneira mágica, simbólica, e concreta dessa forma especular: e isso me lembra o abebe de Oxum (a despeito de toda interpretação mais recorrente e heteronormativa que insiste em dizer que ela se mira porque é vaidosa), essa ferramenta de autoconhecimento, de olhar a si mesmo pra saber-se quem é e ainda, porque o espelho mostra também em segundo plano o que tá atrás, olhar o passado: de onde se veio.

Aprendi essa interpretação com a ativista Elisia Santos, em 2009, quando Naiara Leite me convidou pra o primeiro Encontro Nacional de Jovens Negras Feministas, e fiquei matutando isso até poder escrever minha tese de doutorado, em 2011/2014, sobre o tema. E acho que essa própria virada dentro do pensamento negro sobre nossas narrativas mais fundamentais, como são os itans, tão relacionadas aos processos de descolonização do nosso imaginário, às estratégias de sair do lugar-comum das representações sobre negritude e construir outros mundos possíveis: no plano imaginado/discursivo, primeiro, como que pra que isso já dê alguma materialidade aos mundos antirracistas que estamos tratando de construir aqui há 500 anos (de forma sistemática, organizada), né?

Atualmente o rolé “nós por nós” na produção literária se intensificou e isso, talvez, está relacionado à produção de conteúdo ter se democratizado com os vários acessos econômicos que três gestões federais de esquerda, no governo do País, significaram, bem como o avanço de algumas políticas afirmativas pra grupos subalternizados nessas gestões. Ao mesmo tempo em que, na última gestão especialmente, povos indígenas e quilombolas enfrentaram retrocessos graves em termos de demarcação territorial e garantia ao direito de viver!!! De viver, sem consolidação de políticas públicas garantidas, e isso conta pra gente que, sim, foram governos cheios de falhas e ainda conectados com agendas políticas conservadoras e povos tradicionais estão morrendo por causa disso.

No campo literário tem editoras mais recentes, como a própria Padê Editorial, que montei com Bárbara Esmenia em 2016, a Ijumaa, em SP; a Ogum’s Toques, em Salvador, Malê Edições, entre várias outras, que estão ampliando o território conquistado nesse quilombismo literário, engrossando o caldo de projetos pioneiros como a Mazza e a Nandyala, ambas editoras de mulheres negras, renovação no mercado editorial colonial que o Brasil ainda tem; protagonismo narrativo preto-afirmado; transformação da política da denúncia (necessário e ao mesmo tempo labiríntico) pela política do anúncio (nós falando de nós de forma efetivamente plural, de muitas vozes, muitas realidades, muitas negritudes, muitas possibilidades); a própria noção de escrita negra como vingança, como Conceição Evaristo bem definiu; mas uma vingança que é quase uma oferenda, que não é sobre retaliar o outro, é sobre ressaltar o “a gente”, nos definir por nós mesmas, enquanto povo preto em diáspora: isso faz parte desse impacto.

Impacto que começa a ser mensurado agora, quando você vê que uma escolinha tem livros com personagens negras em que as crianças negras podem se mirar; rappers negras de 10, 11 anos falando sobre sua negritude de forma plena, afirmada, feliz, celebrativa, em resistência; e daqui uns anos vai estar mais consolidado em termos de autoestima, autorrepresentação, de formas mais subjetivamente imensuráveis mas coletivamente frutíferas no sentido de permitir que a gente, enquanto povo, seja nosso próprio griô. a história dos opressores nunca mais é a mesma, depois de ser contada do ponto de vista de quem resiste: nem eles vão seguir sendo “os senhores”, nem a gente “os escravos”, e isso o Oliveira Silveira já tinha avisado, né?

Somos um povo letrado. muitas culturas negras se fundamentarem na oralidade da palavra não significa que as letras impressas não nos digam respeito, muito do avesso: e a Revolução dos Malês ensinou isso séculos atrás, que dominamos também as artes escritas, com maestria.

E esse é um lugar de disputa estratégico numa sociedade fundamentada no grafocentrismo, como a nossa, e que tem ainda um projeto elitista e urbano de apagamento e padronização linguístico com um português brasileiro hegemônico, sudeste-orientado. 

A cultura do rap taí há décadas pra dizer isso: nós, povo preto, somos um povo letrado, escrevemos, cantamos/contamos nossa própria história, e disputamos representação histórica dentro do campo da palavra. É uma guerra, né? Mas chegamos nela com tecnologias ancestrais que vão de pedras a flores. Literatura é semente, aquela pessoa minúscula que traz dentro de si o futuro de um baobá. Mesmo a linguagem sendo tão frágil, mal permitindo a gente se entender, ela ainda é mágica. E, na moral, de magia a gente entende também.

Herdei de minha mãe, uma paraense escorpiana, uma grande sorte e senso de organização (ela é bibliotecária). De meu pai herdei minha negritude resistente e a graciosidade das palavras: ele é um libriano típico, cantor, compositor, trocadilhista, e que nunca abaixou a cabeça pra polícia na hora dum baculejo. 

Te digo isso pra te dizer que no campo da palavra, falada escrita ou cantada, eu não enfrentei nenhum obstáculo até hoje além de mim mesma: uma enorme timidez que às vezes é imobilizante e silenciadora, e essa aparência, esse corpo gordo que não é escuro o bastante pra ser reconhecido como negro em muitos ambientes mas que é escuro o bastante pra ser considerado de servente. 
Algumas vezes aconteceu de eu chegar num lugar pra me apresentar, ser a palestrante convidada, ou a poeta residente e as pessoas me confundirem com a copeira, pedirem água, cafezinho. 
Especialmente em espaços institucionais/acadêmicos. 

Que bom que a elite branca não me toma como uma de suas pares e me reconhece como quem eu sou: uma pessoa negra. 

Com os estereótipos e lugares sociais que costumam destinar pra gente. Quando isso aconteceu eu só respondi indo fazer o trabalho pro qual tinha sido chamada. De resto, os obstáculos são aquelas provas que 500 anos de colonização racista e sexista já nos acostumara a enfrentar, e são estruturantes: falta de credibilidade à produção, questionamento quanto à qualidade do conteúdo, acusação de panfletarismo, demanda de imparcialidade…

Quando terminei o doutorado e resolvi dar um tempo na produção acadêmica pra me dedicar à minha poesia e minhas canções ficou tudo mais fácil na real, porque é sobre a minha própria palavra voar num céu que é convidativo pra ela: sarau, slam, roda de conversa, espaços de formação não-escolarizados, festival de compositoras… 

Na universidade era de “você como lésbica negra falando sobre escrita de lésbicas negras… seu texto é muito tendencioso”, ou “não conhecemos essas autoras, fica difícil avaliar seu trabalho” pra baixo.

Acho ainda difícil concorrer com a noção tradicional de poesia (algo elitista, burguês, que se fala num café chique) quando vou participar de algum edital, e vejo quem geralmente é selecionada pra eventos/publicações de poesia, mas sei lá, me formei na escola do faça-você-mesma: se não tem espaço pra mim aqui, vou ali e faço meu próprio espaço. Quilombismo como modo de vida, mesmo.

A Padê Editorial é muito isso, uma editora de livros artesanais pra publicarmos outras autoras negras y/ou fanchas, viadas, trans e travas. Os primeiros livros foram “{Penetra-Fresta}”, de Bárbara (SP), depois meu “Lundu,” (DF), depois “Interiorana”, da Nívea Sabino (MG), mais recentemente “Tautologias”, da Daisy Serena (SP também). 

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Acho massa poder combinar no projeto editorial da Padê forma e conteúdo. Rede de produção, de divulgação e de circulação. Pensar numa coisa que seja sobre negritude e sobre dissidência sexual e que conteste as grandes normas de produção editorial e o mercado do tempo mecanizado, do ritmo maquinário.

Minha palavra poética tem sido soprada pelos ventos assim: feito brisa, feito furacão. Publico zine, publico blog, publico livro, solto palavras ao vento, envio áudio-poema pra uma amiga que tá triste, recebo vídeo-poema de uma amiga quando tô triste (o racismo, a lesbofobia, a falta de emprego, a falta de carinho, a extinção de outras espécies deixam a gente muito triste às vezes). 

Encontro num sarau em outra cidade aquela poeta que eu só tinha lido num livro na casa de uma amiga, a gente se abraça, eu digo como gosto da poesia dela e ela diz que conhece a minha e que gosta também!

 A força da minha palavra poética, eu acho, tá em reconhecer que somos frágeis: esse projeto de mundo é frágil, nossos corpos são frágeis, o tempo nos torna cada vez mais quebradiças e o vento leva tudo embora, até as palavras.
E aprendemos a sobreviver juntas: compartilhando axé, compartilhando comida, compartilhando semente, compartilhando palavra, compartilhando futuro. Talvez a força taí : viver em comunidades de palavras, e lutar por encher elas de sentido, de combinar elas com as práticas. Porque também só falar não adianta, né?

 Fonte Correio Nagô /Fotos Paulinha Moraes e Geovanna Bembon


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